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Nordestino, sim senhor! Nascido em Recife, o rádio brasileiro completou 104 anos

Atualizado: 14 de mai.


Lá vem textão! Esta é uma história de paixão, abnegação, vigor (e rigor) científico, uma irresistível determinação de pesquisadores de rádio em revisitar uma outra história, contada a partir do centralismo. Também de um documento que muda o registro do início do rádio no Brasil. Sim! O rádio é nordestino, nasceu em Recife e completou 104 anos em abril. Esta história, caro leitor, tem o tempero de uma boa prosa, espetinhos de variados sabores e, naturalmente, umas cervejinhas bem geladas.


Antes de passar a palavra a alguns personagens dessa crônica, uma contextualização. Como resultado desse percurso científico, livros publicados recentemente já trazem o dia 6 de abril de 1919 e a fundação do “Radio Club de Pernambuco” (conforme a grafia da época) como o marco inicial do rádio no país. Exatamente: o rádio brasileiro nasceu no Nordeste.


A referência até então mais conhecida era a fundação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, por Roquette Pinto, em 1922. Essa mudança de perspectiva, que já vinha sendo debatida a partir de várias pesquisas científicas, foi referendada com a publicação da Carta de Natal. O documento foi tornado público durante encontro da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar), realizado na capital potiguar. O que poucos sabem é que a Carta de Natal, desfecho desta história, resultado desse encontro de pesquisadores, nasceu numa mesa de bar.


Era uma quinta-feira, 20 de junho de 2019. O assunto em torno da mesa em Neópolis incluía, claro, o rádio, particularmente as pesquisas apresentadas sobre o tema no segundo dia do encontro da Alcar, evento que reuniu pesquisadores do Brasil inteiro na UFRN. A conversa girava em torno dos vários estudos que reconheciam o pioneirismo dos pernambucanos como marco inicial do rádio no Brasil e na América Latina. Naquela mesa, havia quatro pessoas apaixonadas, cada uma a sua maneira, pelo rádio.


Eu, Renato Moraes, jornalista e redator do blog, estava lá, ainda extasiado pela defesa da dissertação de mestrado em Estudos da Mídia, que ocorrera um dia antes. Eu, que estudo televisão, tive a honra de ter sido testemunha da gestação desse documento que revisita a história do rádio. E de compartilhar aquela mesa com a agradável companhia dos pesquisadores Ciro Pedroza e Alexandre Mulatinho, da UFRN, e Artur Ferraretto, da UFRGS.


Ciro Pedroza, recém titulado doutor em Linguística Aplicada pela UFRN, participante da Mesa e signatário da Carta, foi quem sugeriu o local. Mulatinho esquentava as turbinas para a defesa da dissertação de mestrado em Estudos da Mídia, que ocorreria um dia depois. E Ferraretto, uma das principais referências em estudos de rádio no Brasil, nos brindava com relatos de sala de aula, política e causos da academia.


Vez por outra, o assunto rádio-Nordeste-Pernambuco voltava à tona. “Já que havia unanimidade entre os cientistas, por que não assumir publicamente essa posição de pioneirismo do Nordeste como marco do evento”, questionou Mulatinho. “Por que não?”, concordaram Pedroza e Ferraretto, que então iniciaram as articulações com os demais pesquisadores que participaram de uma mesa redonda sobre o tema na UFRN. Seria o documento no qual a ciência reconhecia a experiência do Rádio Clube de Pernambuco como o início do rádio no país.


Cada um desses pesquisadores de rádio tem seus motivos para celebrar essa história, agora revisitada. O professor Luiz Artur Ferraretto fala com entusiasmo sobre o tema. “O rádio brasileiro começou em Recife porque foi na capital de Pernambuco que surgiram as primeiras pessoas interessadas em desenvolver algo pelo que na época se chamava de radiocultura, ou seja: cultivar o rádio”. Conforme o pesquisador, Recife, cidade portuária, crescia e havia a necessidade de comunicação entre a terra e os navios que aportavam na capital pernambucana. “E que meio de comunicação é o mais adequado para conectar a terra a barcos? O rádio da época, ou seja: a radiotelegrafia, a radiotelefonia”, relata.


“Antes da Primeira Guerra Mundial, rádio não era como a gente conhece hoje ou como a gente conhece desde os anos 20. Rádio era sinônimo de wireless - sem fio”, explica Ferraretto. “Essas pessoas começavam a cultivar o rádio pela posição geográfica da cidade de Recife. Então começa esse cultivo do rádio. Ouvir mensagens de fala ou de receber mensagens em código morse entre dois pontos e um ponto conseguir conversar com o outro”, completa.

Daí vem a guerra, diz Ferraretto, e as primeiras estações de amadores se tornam ilegais. “Em dado momento, um cidadão chamado Augusto Pereira publica uma carta num dos jornais da cidade do Recife, pedindo que seja compreendida essa diferença, que seja valorizado o trabalho dessas estações clandestinas que estão sendo fechadas”. Terminada a guerra, conta Ferraretto, esse cidadão começa a organizar o Radio Club de Pernambuco, que surge em 1919 e que tem como foco o rádio de forma ampla.


A Carta de Natal é mais que um documento, diz o pesquisador. “Significa, primeiro, valorizar, os pioneiros de Pernambuco, contra uma construção histórica que, em qualquer país do mundo, é sempre dos grandes centros para os centos menores. E aqui nós estamos invertendo isso”, comemora Ferraretto.


O jornalista Alexandre Mulatinho, que naquela mesa de bar sugeriu aos colegas a confecção da Carta de Natal, afirma que ter presenciado o debate rico e vivo sobre as primeiras experiências do rádio no Brasil foi um marco em sua trajetória como pesquisador. “Foi como participar da cena de um filme. Naquele momento estava sendo retirado do Rio de Janeiro o pioneirismo e recontando o esforço da experiência de Recife (PE), aqui na região Nordeste. Vivenciar a reformulação da história do rádio foi impactante e fortaleceu meu desejo pela pesquisa”.


No mestrado, Mulatinho estudou a história da Rádio Rural de Natal. Hoje doutorando em Estudos da Mídia na UFRN, o jornalista, que também acumula experiência profissional no rádio, tem interesse especial nesse cenário de constante modificação que a pesquisa proporciona.


“Pesquiso a história do rádio e tenho muita curiosidade pelas novas facetas do rádio fazendo uso dos aparatos tecnológicos e midiáticos e, em especial, o perfil da nova formação do profissional”, explica.

Além do seu valor científico, opina Mulatinho, a Carta de Natal é representativa também para a Alcar e para a UFRN, organizadores do evento, realizado no Nordeste, em 2019, ano do centenário do rádio. Mais: o documento nasce a partir das discussões de um grupo de pesquisadores (Grupo Temático História da Mídia Sonora) da associação. E após uma mesa redonda organizada especificamente para discutir o pioneirismo dos pernambucanos em relação ao início do rádio no país.


Uma infância com trilha sonora

As memórias do jornalista, radialista e doutor em Linguística Ciro Pedroza são de uma infância embalada pelas trilhas sonoras do rádio. Das tardes e da tia que engomava ouvindo as novelas, das noites em que o pai ouvia as partidas para divulgar os resultados- Horácio Pedroza era plantonista esportivo. “A hora de dormir era na companhia dos grandes locutores da Radio Nacional. De Adelzon Alves, o ‘amigo da madrugada’, na Rádio Globo. Moisés Azevedo, lá na Sociedade de Salvador – Bahia”, conta, reproduzido o som das vinhetas dos programas.


Aos poucos, essa relação com o rádio e as pessoas que nele trabalhavam se transformou em interesse crescente. “E um interesse crescente pela teoria, de entender como é que as coisas aconteciam no rádio, como é que o som chegava nos aparelhos, como e o que chegava na cabeça da gente, como é que a gente ouve rádio, como é que a gente fala no rádio”, completa.


Signatário da Carta de Natal, Ciro diz que o contato com pesquisadores do rádio de todo o Brasil - “são mais de duas décadas”, lembra - foi uma oportunidade ímpar de ajudá-lo a pensar o rádio.


“A gente aprende na prática e repensa a prática confirmando na teoria, lendo a teoria, estudando. Aprende na teoria e coloca em prática, vai testando, vai misturando as coisas, vai fazendo essa alquimia”, resume. “Quer dizer: pensar o rádio enquanto objeto de estudo e pensar o rádio enquanto objeto de intervenção”.

Para Ciro, viver o momento em que a Carta de Natal foi gestada “foi um privilégio enorme, a chance de estar no lugar certo, na hora certa”, pois o documento reconhece o estudo pioneiro defendido pelo professor Luiz Maranhão Filho, de Pernambuco, de que a Rádio Clube de Pernambuco, sim, foi a pioneira no rádio. “Essa foi uma tese ignorada e foi motivo de chacota, de indiferença de muita gente. E agora, na verdade, mais do que repor essa verdade histórica, a gente faz uma justa homenagem a ele, através de uma pesquisa cuidadosa do nosso querido professor Pedro Serico Vaz, meu companheiro lá de São Paulo”, completa.


Fragmentos do início do século XX

Também signatário da Carta, o pesquisador Pedro Serico Vaz Filho, que concluiu recentemente estudos de pós-doutoramento no tema, relata que os fragmentos dessa história foram investigados em jornais e revistas a partir do ano de 1919. “Estas, numa sequência cronológica apontando o dia 06 de abril de 1919 como base para a organização da primeira emissora de rádio do país e da América Latina, reorganizada no dia 17 de outubro de 1923. Se a estação foi “reorganizada”, quer dizer que houve uma organização antes, e esta foi iniciada em 06 de abril de 1919”.


Mas essa história já vinha sendo revisitada no trabalho de vários pesquisadores Brasil afora. Vaz Filho lista uma série de estudiosos e suas obras. Uma delas tem um traço característico: laços afetivos entre o objeto de estudo e o pesquisador. O livro é o "Raízes do Rádio", do ano de 2012, organizado pelo professor Luiz Beltrão Cavalcanti de Albuquerque Filho. “


“A obra é formada por doze artigos que defendem o pioneirismo da mencionada emissora. Luiz Maranhão Filho, como é tratado, é filho de Luiz Beltrão Cavalcanti de Albuquerque, que atuou na emissora nas décadas de 1930, 1940, 1950, até o falecimento em 1962, de infarto, num dos estúdios da estação. Ou seja: homem que tem propriedade sobre as afirmações que realiza acerca do que se concebe sobre a primeira emissora de rádio do Brasil e da América Latina”, diz o pesquisador.

Vaz Filho cita outros nomes: Renato Phaelante, que realiza a mesma certificação no livro Fragmentos da História do Rádio Clube de Pernambuco, de 1998. Antonio Camelo, Conceição Ratis, Ivan Dorneles Rodrigues, Luiz Artur Ferraretto, Marcelo Kischinhevsky, Gisela Swetlana Ortriwano, Sonia Virginia Moreira e Reynaldo Tavares, referências históricas importantes que citam a emissora em obras fundamentais que publicaram.


“O tema também é referenciado recentemente na obra Tendências e perspectivas do radiojornalismo nos 100 anos de radiodifusão no Brasil: do local ao transnacional”, com assinatura de Norma Meireles Mafaldo, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Nair Prata, Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Paulo Fernando Lopes, Universidade Federal do Piauí (UFPI), Paula de Souza Paes, Universidade Federal da Paraíba (UFPB)”, explica Vaz Filho.


Foto: anncapictures (Pixabay)

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2 comentários


heraldopalmeira
12 de abr. de 2021

Olá, Renato, Sou mais antigo do que você, Ciro e Mulatinho. O suficiente para dizer que, ainda menino, ouvi muitas vezes o slogan "Rádio Clube de Pernambuco, primeira voz da América Latina". Sempre dito com orgulho, peito cheio. Como Rio de Janeiro e sêo Roquette estão incluídos nesse ponto do mapa... Abraços, Heraldo Palmeira.

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Renato Moraes
Renato Moraes
12 de abr. de 2021
Respondendo a

Olá, Heraldo

Esse slogan já diz tudo. Interessante como o rádio desperta essas memórias afetivas. Com a chancela da ciência, creio, os livros, aos poucos, vão contribuir para esse reconhecimento do pioneirismo da Rádio Clube de Pernambuco.

Grande abraço e obrigado por nos acompanhar.

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